sábado, 21 de outubro de 2023

QUEM É BETA? E DISTOPIA BRASILEIRA

 



               Muito antes do Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazerem o seu Bacurau, contando uma história sobre um futuro distópico(não tão distante assim), outro cineasta brasileiro lá na década de 1970 do século 20, já havia contado uma história que conseguia mesclar ficção científica, psicodelia e zumbis(!) de uma forma que só a gente consegue fazer.

                  Quem é Beta?, filme obscuro da carreira do famoso Nelson Pereira dos Santos, exibido em 1973, fala sobre um Brasil que foi destruído por uma guerra nuclear, onde os poucos humanos se dividiram em dois grupos: um é o dos sobreviventes, que criaram pequenas fortalezas para se protegerem de um outro grupo, formado pelos infectados, que são pessoas que perambulam pelas estradas tais como zumbis e são metralhadas sem nenhuma piedade pelos “sobreviventes”.




                  Esse filme foi feito num período bastante conturbado da nossa história cinematográfica, onde o movimento do Cinema Novo acaba e muitos dos seus diretores, incluindo Nelson, sofrem bastante para bancar as suas ideias, indo acabar na criação do movimento de um cinema mais marginal, fora do alcance de um grande público. No caso desta obra, Nelson buscou ajuda na França, então aqui temos atores franceses, que depois receberam uma dublagem com atores brasileiros.

               Apesar de se tratar de um Brasil pós-apocalíptico, o que o Nelson Pereira dos Santos propõe aqui é dar uma visão do Brasil que ele estava vendo naquele período horrendo da ditadura militar. Não custa nada lembrar que em 1973, o país sofria com o governo Médici, considerado por muitos como o mais violento do regime militar, onde muitos morreram. No filme temos um país destruído, onde a maioria das pessoas, os zumbis no caso, estão vagando sem rumo por comida e água, e existe um pequeno grupo que está tentando se reorganizar e criar um novo modelo de vida.





                  É por essas e outras que eu adoro o cinema e a sua capacidade de criar metáforas para explorar e criticar o que de melhor e pior(que é o caso) acontece na nossa realidade. E o mais legal é como esse filme acaba tendo uma influência muito forte no nosso, já badalado Bacurau, já que o longa do Kleber e Juliano Dornelles retrata, através de um realismo fantástico, problemas bastante reais e que insistem em persistir na nossa sociedade.

                Quem é Beta? tá disponível gratuitamente no Youtube, é só procurar fácil que você encontra. De quebra, reveja Bacurau logo em seguida. Divirta-se!

https://www.youtube.com/watch?v=aM1CYdePCA8

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

LA JETÉE E O FILME EM FOTOS

 



              

                A poesia se sobressai e aparece em muitas formas, devo admitir. No cinema, a poesia se demonstra muitas vezes na beleza e até no terror de muitas cenas emblemáticas, que poderia passar este texto inteiro apenas falando sobre elas. Entretanto, hoje, vou me ater a um curta que para mim é de uma beleza e singularidades sem iguais, vou falar sobre La Jetté, ou na tradução para o nosso português, O Píer.

                O francês Chris Marker foi extremamente visionário na totalidade de seus trabalhos, chamados por muitos como filmes-ensaio. De estética vanguardista, Marker estava disposto na década de 60 a mexer com paradigmas impostos pela indústria cinematográfica e, decidido a ser um contraponto a uma visão, digamos, mais simplista na forma de contar suas histórias.


                             Muito influenciado pelo filme clássico do Hitchcock Um Corpo que Cai, Marker tentou definir um conceito que ele mesmo chamou de “vertigem do tempo”. Olha, não vou me atrever a afirmar se ele consegue ou não definir isso mas, o que de fato ele fez foi algo simplesmente espetacular.

                No curta, ficamos sabendo que num futuro próximo houve uma terceira guerra mundial, a população que conseguiu sobreviver a esse holocausto, agora vive como ratos, em subsolos escuros e de aspecto deplorável. Para conseguir meios para sair dessa situação trágica, os cientistas descobriram uma forma de viagem do tempo. Depois de inúmeros testes fracassados, eles descobrem que para a viagem dar certo é necessário que primeiro, a cobaia tenha em sua memória algo muito forte do seu passado, algo que consiga criar um elo de ligação capaz de fazer sua mente “transitar” entre o tempo. Por sorte, eles conseguem encontrar essa pessoa, um prisioneiro que durante toda sua vida tem nítida uma imagem em sua cabeça que sempre lhe deixou intrigado.


              Inicialmente ele viaja para o passado e depois para um futuro ainda mais longínquo, apenas para descobrir que a imagem que sempre lhe perseguiu na sua mente não era uma lembrança tão boa assim.

               Agora, um aviso de SPOILERS, leia agora por sua conta e risco. Se não, vá ao Youtube e veja essa pérola de apenas 28 minutos agora mesmo.

                 Pois bem, a imagem que sempre lhe perseguiu era nada mais nada menos do que a sua própria morte. Quando criança, antes da guerra iniciar, ele avistou um homem correndo em direção a uma mulher, esse homem é baleado e acaba morrendo. A figura da mulher aos prantos ficou marcada na sua memória. O que ele não sabia e acabou descobrindo no processo de viagem no tempo era que a mulher que ele se lembrava era a grande paixão que ele teve e que o homem a ser morto era ele próprio, já adulto.


                              Um dos grandes méritos do curta é claro, a forma como ele é feito. Marker utilizou do conceito de fotonovela, ou seja, o filme é 99% feito de fotos, sendo as ações dos personagens feitas por um narrador. Falo que é 99 pois há uma única cena (bem de relance) que possui movimento.

                 A relação entre o tempo e as fotos não podia ser mais do que genial. A rigidez das fotos nós dá a ideia de que é impossível escapar da rigidez do próprio tempo, como se o que tivesse que acontecer vai acontecer de qualquer forma e não há absolutamente nada que possamos fazer para impedir isso. Tudo isso pra trazer uma história de ficção científica, mostrada de forma nada tradicional.

                  OBS.: Esta história inspirou, anos depois o diretor Terry Gilliam a fazer o seu Os 12 Macacos, filmaço com Bruce Willis e Brad Pitt. Logo, aconselho de uma tacada só a ver um dos melhores curtas da história do cinema(não sou apenas eu a afirmar isso) e também uma das grandes obras dos anos 90.



 

 


quarta-feira, 20 de setembro de 2023

DAVID LYNCH E TWIN PEAKS

 


               

              David Lynch nunca foi afeito a criar histórias simples. Desde do seu primeiro filme, o visceral Erasherhead que, Lynch sempre beirou entre temas que envolviam o bizarro, o fantástico e por vezes até mesmo o sonho, onde muitas das cenas mais pareciam saídas de um devaneio.


               Na verdade, o único ponto fora da curva foi Duna, lançado em 1984 e que se mostrou uma experiência traumática para todos os envolvidos. Preso a uma estrutura, digamos, mais simples, Lynch tendo pela primeira vez um alto orçamento, sofreu uma pressão absurda para contar uma história complexa, que só faria sentido se fosse contada em no mínimo 5 horas (!). Em tempos onde a segunda parte nova versão imaginada por Denis Villenueve chegará em breve aos cinemas (isso se a greve deixar) é até interessante dar uma revisada na saga de Paul Atreides idealizada (a muito contragosto) por Lynch.

               Mas, não são as histórias que ele levou para os cinemas que iremos falar hoje mas sim, a história que ele levou para as telinhas da TV. Vamos falar sobre Twin Peaks. Inicialmente pensado como um filme, a série teve duas temporadas iniciais (1990 – 1991) exibidas pelo canal ABC, com 30 episódios no total. Pra você ter ideia de como essa produção mudou tudo que entendíamos sobre séries de TV basta imaginar que sem ela, simplesmente não existiria várias outras como Lost, Under the Dome, Black Mirror Arquivo X e por aí vai. Toda série que vemos hoje que trata do sobrenatural, mistério e qualquer tipo de bizarrice deve muito as desventuras ocorridas na pequena cidade de Twin Peaks.


 

                               A trama, pelo menos da primeira temporada, narra a trágica morte da garota mais popular da cidade, Laura Palmer (interpretada por Sheryl Lee). Logo no primeiro episódio, seu corpo é encontrado e uma série de investigações se iniciam e a medida que os episódios avançam vamos percebendo que Laura tinha uma ligação bastante peculiar com vários moradores da cidade, onde cada um parece esconder um segredo. A história obviamente não fica apenas nisso, a vasta gama de personagens bizarros que vão aparecendo nos forçam a cada vez mais ficarmos presos nessa história, que ora parece um conto de terror, ora uma comédia, ora um romance. Tem tudo em Twin Peaks e nada parece ter sido colocado de forma aleatória ou para “encher linguiça”.

                Outro personagem cativante é o agente do FBI Dale Cooper(Kyle MacLachan). O nosso protagonista da série, Dale é um sujeito nada normal, dotado de um senso de humor pra lá de estranho, ele também possui dons que beiram o sobrenatural, tendo sonhos premonitórios que ele registra tudo em seu gravador.

                Visto hoje, a série tem alguns pontos negativos. Após os dois primeiros episódios, simplesmente arrasadores, é verdade que o ritmo se torna um pouco lento, o que torna proibitivo pra galera que gosta de maratonar série em um fim de semana. Aqui não dá, é interessante que cada episódio seja devidamente apreciado como ele foi exibido originalmente, com um certo espaçamento, até pra deixar o cérebro compreender a tamanha bizarrice que está sendo exibida. Outro aspecto ruim é que tem alguns episódios simplesmente parecem andar em círculos, certamente, se fosse feito hoje em dia, 10 episódios em cada temporada era mais do que suficiente.

                Mas, tirando esses dois pontos, a série é um primor, principalmente sua primeira temporada com um episódio final que bota no chinelo qualquer filme de terror da série Invocação do Mal no chinelo. É certo que a segunda temporada também tem seus méritos mas, é visível um certo cansaço, principalmente porque depois da revelação de quem havia matado Laura Palmer, parecia que a história tinha chegado ao fim e nota-se que Lynch foi obrigado pela rede de TV, a “esticar” um pouco além a sua trama.

                 De qualquer forma, é inegável a importância da série para a história, não só da TV norte-americana que foi impactada com um conto sórdido de mistério, sexo, traições e terror mas, na história da TV mundial. Afinal de contas, todos nós temos um pouco de bizarrice. 

                   Obs.: Uma terceira temporada foi feita, mais de duas décadas depois pela Netflix e vale uma conferida. Estranhamente, o streaming vermelhinho não colocou as duas primeiras (vai entender). Tem também um longa, Os últimos dias de Laura Palmer, lançado em 1992, que foi um fracasso tanto de crítica quanto de público mas, pra falarmos sobre ele, será em  um outro post. Até. 



quinta-feira, 27 de julho de 2023

SAM RAIMI E 3 FILMES

 




               Assim como um leitor observa um estilo adotado por um autor, ao longo do tempo, ou um pintor, uma banda de rock e por aí vai, o mesmo acontece obviamente no cinema. Para um diretor que é também autor, é fácil perceber elementos, características que permeiam cada filme que é realizado.

                  Mas como assim, você pode perguntar: “diretor que também é autor”? Nem todo diretor é autor? Pois é, meu caro, nem sempre o diretor consegue dar total vazão às suas ideias quando estão filmando ou no processo de pós-produção. Isso pode ser devido a uma série de fatores, que não vou me alongar hoje, mas com certeza, servirá como tema futuro.

                 Hoje darei um exemplo de um diretor autor, um sujeito que começou contra todas as expectativas, realizando um trabalho que, aqui nas terras tupiniquins, seria facilmente taxado de “cinema de guerrilha”. Alguém que depois de todo o sucesso, e entrando no esquema dos grandes blockbusters, ainda sim, mantém a sua visão acerca do processo criativo, tornando fácil para quem assiste, perceber todos os seus maneirismos. Estamos falando de Sam Raimi.

                   Nascido em 1959, no estado de Michigan, Estados Unidos, Samuel Marshall Raimi nos anos 70, já era considerado o que no futuro seria denominado nerd. Leitor voraz de quadrinhos e com gosto particular para o cinema de terror, Raimi foi despertando o interesse como realizador de cinema.

                 O cinema de Raimi tem como características um trabalho criativo no uso das câmeras, causando um nível de imersão absurdo, a mescla de horror com uma dose de comédia pastelão, a eficácia no uso de efeitos práticos e uma forma bastante peculiar de levar os protagonistas das suas histórias a um sofrimento que beira o sadismo. Vou apresentar aqui três exemplares, mas aconselho a ver todos. 

UMA NOITE ALUCINANTE 2

 


             Não tem jeito, falar de Sam Raimi é falar de sua criação máxima. Lançado em 1987, Uma Noite Alucinante 2 (título meio maluco porque o primeiro se chama A Morte do Demônio, mas enfim, Brazil) mudou o jogo para o então jovem diretor que, seis anos antes havia realizado o primeiro filme com o dinheiro de troco de pão, feito com os amigos da faculdade mas, que por incrível que pareça, fez um sucesso absurdo, muito sucesso inclusive fora dos Estados Unidos, fazendo um circuito vitorioso em vários festivais pelo mundo. Depois que Stephen King avaliou o filme falando que era a melhor coisa da década(!), o filme começou a fazer burburinho, sendo aclamado posteriormente, alavancado principalmente com a novidade que surgia na época: as videolocadoras. A história do filme? Sim, vamos lá. Apesar de ter o 2 no título, na realidade o que vemos nada mais é do que a mesma história do primeiro filme sendo recontada, desta vez com mais recursos, mas engana-se que se trata de uma mera refilmagem. Ash(papel da vida de Bruce Campbell) e sua namorada Linda (Denisse Bixler) vão passar o fim de semana numa região montanhosa, numa cabana longe de tudo e todos. O problema é que ao chegarem na tal cabana, Ash invoca, sem saber, espíritos determinados a transformar a noite do casal em verdadeiro inferno na terra. Para as plateias de hoje, mais cínicas e sem tanta vontade de se impressionar, o filme pode parecer algo como um trabalho de youtube, devido a precariedade dos efeitos e até mesmo das atuações, mas, não se deixe enganar, o que Raimi faz aqui fez história e se tornou referência para o cinema de horror. Nunca um passeio inocente numa cabana deserta foi visto da mesma forma.


UM PLANO SIMPLES


              Raimi é muito amigo dos Irmãos Cohen, tendo inclusive colaborado na parte técnica ou servido de influência em muitos dos filmes elaborados pelos dois irmãos. Era questão de tempo até o próprio Raimi também ser influenciado por eles. Aqui, numa pequena cidade interiorana, aquelas onde todo mundo se conhece, Hank (Bill Paxton) em uma caçada rotineira feita com seu irmão Jacob (Billy Bob Thornton) encontra os destroços de um avião, soterrados em uma densa camada de neve, ao investigar o local mais um pouco, Hank descobre malas e malas de dinheiro, cerca de 4 milhões de dólares! O que testemunhamos a seguir é a velha questão moral, que imediatamente a gente se colocar a fazer também: o que fazer ao esbarrar com 4 milhões? Simplesmente chama as autoridades ou fica com a grana? Pois é basicamente essa é a trama desse filme que, é até considerado subestimado na carreira do diretor, mas que pra mim, merece um lugar de destaque. No inicio fiz questão de contar a amizade de Raimi com os Cohen, e isso não foi à toa, porque esse é um tipo de história facilmente atrelado ao cinema deles. Temas como cobiça, moralidade e a total imprevisibilidade de uma crescente onda de pequenos erros que vão desembocar em um final catártico, fazem esse filme, altamente contido e sério, uma boa pedida.

 

DARKMAN – VINGANÇA SEM ROSTO



             Antes de Homem-Aranha e antes de Dr. Estranho no Multiverso da Loucura, houve Darkman. Pouco tempo depois de um outro jovem diretor, no caso Tim Burton, apresentar ao mundo sua visão de filme de super herói com Batman de 1989, Raimi percebeu que também poderia surfar na onda desse novo filão, apresentando uma história também baseada em quadrinhos. O personagem que escolheu foi o herói pulp dos anos 30 O Sombra, mas nenhum estúdio deu moral. Insistente, sabendo que não conseguiria os direitos do personagem para fazer o seu filme, ele então decide criar seu próprio personagem de quadrinhos. Na realidade, Darkman é uma verdadeira colcha de retalhos, com características que foram pegadas “emprestadas” de vários personagens diferentes, não só dos gibis, mas, também da literatura como O Médico e o Monstro, Frankestein. Liam Nesson (estreando no cinema de ação, olha só) dá vida ao cientista Peyton Westlake, que está perto de criar a pele artificial perfeita. Infelizmente, sua pesquisa e sua vida são brutalmente tiradas quando um grupo de criminosos invade o seu laboratório. Depois de ser brutalmente torturado, ele é deixado para morrer na explosão. Milagrosamente ele escapa, onde é levado para o hospital como indigente. Essa é a desculpa perfeita para que, um time de médicos o use como cobaia para uma experiência radical. Sem condições de suportar as terríveis dores das queimaduras, ele passa por um processo onde o trato espinotalâmico é cortado, o que lhe confere “superpoderes” como ser imune a dor e uma força sobre humana. Ao fugir do hospital, Peyton, agora totalmente desfigurado e sozinho, planeja a sua vingança contra aqueles que o destruíram. Tudo que veríamos com mais detalhes e apuro técnico nas aventuras de Peter Parker de Tobey Maguire estão presentes aqui. A atmosfera sombria, a trilha sonora do Danny Elfman, as questões morais, a violência atrelada ao humor somadas com uma eficiente atuação de Neeson tornam esse filme um exemplo palpável de como transpor a energia vibrante das histórias de quadrinhos em celuloide. 



domingo, 9 de julho de 2023

CÃO BRANCO E O RACISMO

                É triste constatar que a galera hoje em dia curte muito pouco ou praticamente abomina a ideia de assistir a filmes “antigos”. Coloco em aspas pois, pra esse pessoal, a ideia de antigo é qualquer coisa lançada em 2018! Esse “problema” só não é pior que o outro, que esse sinceramente, eu não suporto toda vez que ouço, o problema da preguiça que vem acompanhado daquela frase: “Tem na Netflix? Se não tiver, não vejo”.  

               Esse tipo de conversa por si só já daria muito pano pra manga para uma discussão mais acalorada, mas, vou me conter um pouco mais porque a conversa é pra falar de outra coisa, que tá atrelada a essa ideia de “filme antigo”: vamos falar sobre Cão Branco.

               Samuel Fuller, diretor do longa e também criador do roteiro junto com Curtis Hanson (que mais tarde ficaria famoso com seu Los Angeles – Cidade Proibida), tem aqui seu último trabalho em território norte-americano, visto que, Fuller sempre foi um diretor apegado ao controverso e temas subversivos. De fato, os EUA não estavam preparados para muitas das ideias que Fuller pregava em seus filmes.

                Nesse longa, lançado no longínquo ano de 1982, Fuller se propõe a discutir como se nasce o discurso de ódio e como a estupidez de tal discurso pode chegar a consequências aterradoras. O filme inicia quando uma jovem, de nome Julie(Kristy McNichols) atropela um pastor alemão e sem saber quem é o dono, ela o leva para casa para tratar seus ferimentos. Os dias vão passando e mesmo colocando panfletos (galera do zap, estamos em 1982 tá?) o dono nunca aparece, então ela decide ficar com o bichinho, um enorme cão branco (que dá título do longa).

                Mas algo de muito estranho existe no cão, que tem um modo operandi de ataque bastante peculiar: ao se deparar com pessoas negras, o cão aparentemente dócil se transforma em uma fera imparável. Depois de quase matar uma colega dentro do seu trabalho e de uma ataque dentro de uma igreja (cena essa bem intensa), Julie decide que o melhor para o cachorro é trata-lo, levando-o para um especialista em psicologia animal, na trama interpretado por Paul Winfield, numa tentativa de fazer com que o bicho tire esse ódio que, evidentemente não nasceu junto com ele mas sim, foi devidamente condicionado pelo seu dono anterior.

               É muito sútil a forma como Fuller traça essa alegoria de culto ao ódio, fugindo do filme básico de fera aterrorizante que mata de forma indiscriminada. Nunca vemos como foi feito o treinamento para que o cachorro criasse essa aversão às pessoas negras, mas nem precisava. O que a trama quer levantar é: o racismo é algo tão irracional assim? E outra questão, que considero até mais importante: assim como o cão, que foi ensinado a odiar, nós também não seriamos passíveis dos mesmos tipos de “ensinamentos”?
                É uma pena que na época em que foi lançado, o filme sofreu severos boicotes, inclusive do próprio estúdio, que acuado, por diversas organizações sociais que viram com horror uma história de um cão assassino que mata gente preta, tratou por fazer um esquema de lançamento pífio, praticamente escondendo o filme do público. Lançado hoje, certamente entraria no hall da cultura do cancelamento, devido a sua temática totalmente ácida e repulsiva. Para Samuel Fuller, esse tipo de coisa, seria um belo de um elogio.



 


quinta-feira, 8 de junho de 2023

DONALD GLOVER E ATLANTA

 


            Série é um troço que realmente necessita de comprometimento, pelo menos para mim. Eu não consigo ver 3 séries ao mesmo tempo, se inicio uma, tenho que acompanhar só ela por inteira. E esse “trabalho” fica mais difícil porque eu não sou fã de maratonas, visto que, a meu ver, isso tira totalmente a imersão da história toda, deixando tudo sem propósito, virando mais um “fast food”.

            Tirando toda essa minha birra, é complicado acompanhar séries. Afinal de contas, a nossa geração começou nesse negócio há bem pouco tempo atrás. Vai me dizer que você acompanhava Chaves e Chapolin temporada por temporada? Você nem sabia o significado desse termo, rs.

             São poucas as séries que me prendem, por isso a preferência por filmes, já que o nível de “comprometimento” é bem menor. Mas, de vez em quando, surge algo no horizonte, algo que chama a atenção e no texto de hoje, falarei um pouco sobre uma série que, definitivamente, muito mais gente deveria falar sobre, estou falando de Atlanta.


            A série, cria da mente de Donald Glover (um dos grandes nomes dessa geração que conta com Joordan Peele e Edgar Wright, só pra começar), narra a trajetória de vida de Earn(interpretado pelo próprio Glover), um sujeito sem nenhuma perspectiva, sem dinheiro, vivendo uma relação esquisita com sua ex e ainda tendo que lidar com as responsabilidades de criar sua filha. Decidido a mudar de vida, Earn se torna agente do seu primo, Alfred (Bryan Tyree Henry), rapper que está criando uma fama meteórica com a alcunha de Paper Boy.

             A série, que no momento que escrevo estas linhas está na sua terceira temporada, apresenta episódios relativamente curtos (entre 25 a 30 minutos), o que facilita o engajamento, embora eu aconselhe a não maratonar, assista 2 ou 3 episódios seguidos no mínimo e, se deixe pensar um pouco sobre as coisas que vê. O enredo mescla de forma muito satisfatória o drama e a comédia. A lista a seguir trás os melhores episódios de cada temporada, obviamente,  sob o meu ponto de vista. Mais uma vez, aconselho assistir tudo. Bora lá.

 

TEMPORADA 1, EPISÓDIO 7


             
Intitulado B.A.N.(nem conto o significado da sigla), o sétimo episódio da primeira temporada é um deleite. Com um humor ácido e uma dose de surrealismo, o episódio faz uma crítica sobre gênero, feminismo e intolerância. Há muito tempo não tinha rido tanto e, ao mesmo tempo, tinha ficado tão nervoso.

TEMPORADA 2, EPISÓDIO 6

            Teddy Perkins é a cereja do bolo de uma segunda temporada maravilhosa. Se quem acompanhava a série pensava que a mente inquieta de Glover já tinha dado o que podia, pensou muito errado! Suspense, terror, com claras inspirações em clássicos como O Iluminado, evidenciam que Atlanta definitivamente existe para quebrar qualquer tipo de barreira. Bizarrice de muito bom gosto.

 

TEMPORADA 3, EPISÓDIO 4

           A terceira e última temporada (até o momento), talvez represente uma proposta mais radical de ir contra a linearidade dos episódios, o que pode acarretar para alguns uma certa confusão e até mesmo um distanciamento da série. Mas, não se deixe enganar, os comentários sociais urgentes e o uso inteligente de vários gêneros como drama, horror, suspense e comédia ainda continuam. Nesse episódio em questão, intitulado The Big Payback (ou A Grande Vingança), não pretendo dar muito spoiler então, contarei a trama apenas com um questionamento: E se pessoas brancas, que foram descendentes de proprietários de escravos fossem condenados a restituir as pessoas que sua família escravizou no passado? 




quinta-feira, 18 de maio de 2023

CONTROL E IAN CURTIS

 


Existência... bem, o que isto importa?

Eu existo da melhor maneira que consigo.

O passado é, agora, parte do meu futuro,

O presente está totalmente fora de alcance.

O presente está totalmente fora de alcance.

Trecho da letra Heart and Soul


             Pode-se dizer que existem poucos filmes biográficos realmente muito bons. Isso porque existem inúmeros fatores que meio que deixam a obra um pouco “amarrada” e acabam atrapalhando o seu potencial. Agora, enquanto escrevo estas linhas, me vem na memória La Bamba (1987), The Doors(1991) e Control(2007).

               Control narra a história curta porém potente da banda Joy Division e mais especificamente, aborda a vida tortuosa do seu então líder e vocalista, o genial Ian Curtis.

              O período era a década de 70, a Inglaterra passava por um período de extremas mudanças sociais e políticas, a classe trabalhadora passava por grandes perrengues, graças a uma visão bastante intransigente da então Primeira Ministra, Margaret Thatcher. Em termos musicais, entretanto, o país passava por uma fase de extrema ebulição, aos poucos o rock psicodélico, que já sofria com desnecessários virtuosismos, dava espaço para o crescente punk, um som mais visceral e cru, oriundo de jovens sem nenhum estudo musical mas, com muita vontade em expressar uma mensagem para o mundo. Além disso, o glam rock, capitaneado por nomes como David Bowie e grupos como New York Dolls jogava contra qualquer tipo de parametrização, subvertendo a estética e trazendo à tona a libertação sexual.

               Nesse interim, o jovem Ian Curtis(interpretado com muita sobriedade por um desconhecido Sam Riley) vivia de forma pacata na cidade de Manchester. Se casando muito cedo aos 19 anos, já trabalhando no serviço público, Ian sentia que algo não estava certo. Ele almejava algo aliado à arte, mais precisamente trabalhar com música mas, a vida parecida que havia lhe dado um outro rumo, um rumo no qual ele não se sentia feliz. Foi em um show, em 1976, que mudou tudo. No palco quem estava era uma banda ainda dando seus primeiros shows e a plateia, que incluía Ian e sua esposa e mais um pequeno grupo de amigos, perceberam que ali havia uma possibilidade deles também, fazerem música. Ah, quem estava se apresentado eram os Sex Pistols...

              Com os amigos Peter Hook no baixo, Bernard Summer na guitarra e Stephen Morris na bateria, a banda estava pronta. Curtis ficaria a cargo das letras e da voz e aí a história da música passaria para uma nova fase.


              
 Ian sempre foi um amante, por assim dizer, dos tormentos da alma. Muito inspirado por gente como Bukowski, Cooper Clarke, Baudelaire, entre outros e também pelo ambiente opressor que era Manchester naquele período, Curtis traduzia toda a sua inadequação e angústia nas suas letras. Com 22 anos, Ian já se mostrava como um senhor de 80 anos. Os outros integrantes o viam como mais um entre eles mas, o que de fato acontecia, era que nas músicas, Ian já dava sinais de que algo o estava consumindo. A pressão com o sucesso repentino, os shows que estavam se acumulando, o nascimento da filha bem como sua relação extraconjugal e uma inevitável depressão aliada a um tratamento totalmente errôneo da sua epilepsia tornaram por criar uma pressão absurda em seus ombros.
              Era 18 de maio de 1980, numa manhã tipicamente cinza em Macclesfield, região próxima à Manchester, que sua esposa, Deborah Curtis, o encontra em casa, enforcado com as cordas de um varal. A banda havia lançado apenas o primeiro disco, Unkown Pleasures e estava com o segundo disco, Closer, já todo pronto e se encontrava às vésperas para uma turnê em solo norte-americano. Era o fim de um jovem poeta de apenas 23 anos mas, a sua curta passagem por aqui rendeu reverberações. Thom Yorke com o seu Radiohead, Eddie Vedder e o seu Pearl Jam, Bono Vox com U2, Renato Russo com a Legião Urbana, esses só são alguns que beberam e ainda bebem da fonte criada por Ian Curtis e o seminal Joy Division.
              

               O filme, dirigido por Anton Corbjin, é preciso e acompanha todas agruras e os poucos momentos felizes de Ian, onde Sam Riley entrega não só um personagem, mas uma pessoa de fato, com inseguranças, incertezas, com uma incapacidade latente em comunicar para aqueles que mais amava como se sentia, incapacidade essa que o trouxe a um fim trágico. Difícil imaginar outra pessoa a dirigir esse filme senão o próprio Corbjin, já que ele conheceu o grupo na sua época como fotógrafo e graças ao sucesso póstumo que a banda teve que fez com que o trabalho de Anton fosse visto por muito mais gente, sendo requisitado por várias bandas de sucesso mundial durante toda a década de 80, como Depeche Mode e U2.

                  Em nota, o filme é baseado não só nas memórias de Anton com a banda mas sim, do livro escrito pela própria esposa de Curtis, que por aqui teve o título Ian Curtis – Tocando À Distância. É um dos raros casos de leia, ouça e veja. Enjoy!

Quando a rotina é pesada e as ambições são pequenas

E o ressentimento voa alto mas as emoções não crescem

E estamos mudando nossos caminhos,

pegando estradas diferentes

Então o amor, o amor vai nos separar de novo

O amor, o amor vai nos despedaçar de novo

Trecho da letra Love Will Tear Us Apart Again 




QUEM É BETA? E DISTOPIA BRASILEIRA

                 Muito antes do Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazerem o seu Bacurau , contando uma história sobre um futuro dist...