Muito
antes do Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazerem o seu Bacurau,
contando uma história sobre um futuro distópico(não tão distante assim), outro
cineasta brasileiro lá na década de 1970 do século 20, já havia contado uma
história que conseguia mesclar ficção científica, psicodelia e zumbis(!) de uma
forma que só a gente consegue fazer.
Quem é Beta?, filme
obscuro da carreira do famoso Nelson Pereira dos Santos, exibido em 1973, fala
sobre um Brasil que foi destruído por uma guerra nuclear, onde os poucos
humanos se dividiram em dois grupos: um é o dos sobreviventes, que criaram
pequenas fortalezas para se protegerem de um outro grupo, formado pelos
infectados, que são pessoas que perambulam pelas estradas tais como zumbis e
são metralhadas sem nenhuma piedade pelos “sobreviventes”.
Esse filme foi feito num
período bastante conturbado da nossa história cinematográfica, onde o movimento
do Cinema Novo acaba e muitos dos seus diretores, incluindo Nelson, sofrem
bastante para bancar as suas ideias, indo acabar na criação do movimento de um
cinema mais marginal, fora do alcance de um grande público. No caso desta obra,
Nelson buscou ajuda na França, então aqui temos atores franceses, que depois
receberam uma dublagem com atores brasileiros.
Apesar de se tratar de um Brasil
pós-apocalíptico, o que o Nelson Pereira dos Santos propõe aqui é dar uma visão
do Brasil que ele estava vendo naquele período horrendo da ditadura militar.
Não custa nada lembrar que em 1973, o país sofria com o governo Médici,
considerado por muitos como o mais violento do regime militar, onde muitos morreram.
No filme temos um país destruído, onde a maioria das pessoas, os zumbis no
caso, estão vagando sem rumo por comida e água, e existe um pequeno grupo que
está tentando se reorganizar e criar um novo modelo de vida.
É
por essas e outras que eu adoro o cinema e a sua capacidade de criar metáforas
para explorar e criticar o que de melhor e pior(que é o caso) acontece na nossa
realidade. E o mais legal é como esse filme acaba tendo uma influência muito
forte no nosso, já badalado Bacurau, já que o longa do Kleber e Juliano
Dornelles retrata, através de um realismo fantástico, problemas bastante reais
e que insistem em persistir na nossa sociedade.
Quem é Beta? tá
disponível gratuitamente no Youtube, é só procurar fácil que você encontra. De
quebra, reveja Bacurau logo em seguida. Divirta-se!
A poesia se sobressai e aparece
em muitas formas, devo admitir. No cinema, a poesia se demonstra muitas vezes
na beleza e até no terror de muitas cenas emblemáticas, que poderia passar este
texto inteiro apenas falando sobre elas. Entretanto, hoje, vou me ater a um
curta que para mim é de uma beleza e singularidades sem iguais, vou falar sobre
La Jetté, ou na tradução para o nosso português, O Píer.
O francês Chris Marker foi
extremamente visionário na totalidade de seus trabalhos, chamados por muitos
como filmes-ensaio. De estética vanguardista, Marker estava disposto na década
de 60 a mexer com paradigmas impostos pela indústria cinematográfica e,
decidido a ser um contraponto a uma visão, digamos, mais simplista na forma de
contar suas histórias.
Muito influenciado pelo filme
clássico do Hitchcock Um Corpo que Cai, Marker tentou definir um
conceito que ele mesmo chamou de “vertigem do tempo”. Olha, não vou me atrever
a afirmar se ele consegue ou não definir isso mas, o que de fato ele fez foi
algo simplesmente espetacular.
No curta, ficamos sabendo que
num futuro próximo houve uma terceira guerra mundial, a população que conseguiu
sobreviver a esse holocausto, agora vive como ratos, em subsolos escuros e de
aspecto deplorável. Para conseguir meios para sair dessa situação trágica, os
cientistas descobriram uma forma de viagem do tempo. Depois de inúmeros testes
fracassados, eles descobrem que para a viagem dar certo é necessário que
primeiro, a cobaia tenha em sua memória algo muito forte do seu passado, algo
que consiga criar um elo de ligação capaz de fazer sua mente “transitar” entre
o tempo. Por sorte, eles conseguem encontrar essa pessoa, um prisioneiro que
durante toda sua vida tem nítida uma imagem em sua cabeça que sempre lhe deixou
intrigado.
Inicialmente ele viaja para o
passado e depois para um futuro ainda mais longínquo, apenas para descobrir que
a imagem que sempre lhe perseguiu na sua mente não era uma lembrança tão boa
assim.
Agora, um aviso de SPOILERS, leia agora por sua conta e risco. Se não, vá ao Youtube e veja essa
pérola de apenas 28 minutos agora mesmo.
Pois
bem, a imagem que sempre lhe perseguiu era nada mais nada menos do que a sua
própria morte. Quando criança, antes da guerra iniciar, ele avistou um homem
correndo em direção a uma mulher, esse homem é baleado e acaba morrendo. A
figura da mulher aos prantos ficou marcada na sua memória. O que ele não sabia
e acabou descobrindo no processo de viagem no tempo era que a mulher que ele se
lembrava era a grande paixão que ele teve e que o homem a ser morto era ele
próprio, já adulto.
Um dos grandes méritos do curta
é claro, a forma como ele é feito. Marker utilizou do conceito de fotonovela,
ou seja, o filme é 99% feito de fotos, sendo as ações dos personagens feitas
por um narrador. Falo que é 99 pois há uma única cena (bem de relance) que
possui movimento.
A relação entre o tempo e as
fotos não podia ser mais do que genial. A rigidez das fotos nós dá a ideia de
que é impossível escapar da rigidez do próprio tempo, como se o que tivesse que
acontecer vai acontecer de qualquer forma e não há absolutamente nada que
possamos fazer para impedir isso. Tudo isso pra trazer uma história de ficção
científica, mostrada de forma nada tradicional.
OBS.: Esta história inspirou,
anos depois o diretor Terry Gilliam a fazer o seu Os 12 Macacos, filmaço
com Bruce Willis e Brad Pitt. Logo, aconselho de uma tacada só a ver um dos
melhores curtas da história do cinema(não sou apenas eu a afirmar isso) e
também uma das grandes obras dos anos 90.
David Lynch nunca foi afeito a
criar histórias simples. Desde do seu primeiro filme, o visceral Erasherhead
que, Lynch sempre beirou entre temas que envolviam o bizarro, o fantástico e
por vezes até mesmo o sonho, onde muitas das cenas mais pareciam saídas de um
devaneio.
Na
verdade, o único ponto fora da curva foi Duna, lançado em 1984 e que se
mostrou uma experiência traumática para todos os envolvidos. Preso a uma
estrutura, digamos, mais simples, Lynch tendo pela primeira vez um alto
orçamento, sofreu uma pressão absurda para contar uma história complexa, que só
faria sentido se fosse contada em no mínimo 5 horas (!). Em tempos onde a
segunda parte nova versão imaginada por Denis Villenueve chegará em breve aos
cinemas (isso se a greve deixar) é até interessante dar uma revisada na saga de
Paul Atreides idealizada (a muito contragosto) por Lynch.
Mas, não são as histórias que
ele levou para os cinemas que iremos falar hoje mas sim, a história que ele
levou para as telinhas da TV. Vamos falar sobre Twin Peaks. Inicialmente
pensado como um filme, a série teve duas temporadas iniciais (1990 – 1991)
exibidas pelo canal ABC, com 30 episódios no total. Pra você ter ideia de como
essa produção mudou tudo que entendíamos sobre séries de TV basta imaginar que
sem ela, simplesmente não existiria várias outras como Lost, Under the Dome,
Black Mirror Arquivo X e por aí vai. Toda série que vemos hoje que trata do
sobrenatural, mistério e qualquer tipo de bizarrice deve muito as desventuras
ocorridas na pequena cidade de Twin Peaks.
A trama, pelo menos da primeira
temporada, narra a trágica morte da garota mais popular da cidade, Laura Palmer
(interpretada por Sheryl Lee). Logo no primeiro episódio, seu corpo é
encontrado e uma série de investigações se iniciam e a medida que os episódios
avançam vamos percebendo que Laura tinha uma ligação bastante peculiar com
vários moradores da cidade, onde cada um parece esconder um segredo. A história
obviamente não fica apenas nisso, a vasta gama de personagens bizarros que vão
aparecendo nos forçam a cada vez mais ficarmos presos nessa história, que ora
parece um conto de terror, ora uma comédia, ora um romance. Tem tudo em Twin
Peaks e nada parece ter sido colocado de forma aleatória ou para “encher
linguiça”.
Outro personagem cativante é o
agente do FBI Dale Cooper(Kyle MacLachan). O nosso protagonista da série, Dale
é um sujeito nada normal, dotado de um senso de humor pra lá de estranho, ele
também possui dons que beiram o sobrenatural, tendo sonhos premonitórios que
ele registra tudo em seu gravador.
Visto hoje, a série tem alguns
pontos negativos. Após os dois primeiros episódios, simplesmente arrasadores, é
verdade que o ritmo se torna um pouco lento, o que torna proibitivo pra galera
que gosta de maratonar série em um fim de semana. Aqui não dá, é interessante
que cada episódio seja devidamente apreciado como ele foi exibido
originalmente, com um certo espaçamento, até pra deixar o cérebro compreender a
tamanha bizarrice que está sendo exibida. Outro aspecto ruim é que tem alguns
episódios simplesmente parecem andar em círculos, certamente, se fosse feito
hoje em dia, 10 episódios em cada temporada era mais do que suficiente.
Mas, tirando esses dois pontos, a
série é um primor, principalmente sua primeira temporada com um episódio final
que bota no chinelo qualquer filme de terror da série Invocação do Mal no
chinelo. É certo que a segunda temporada também tem seus méritos mas, é visível
um certo cansaço, principalmente porque depois da revelação de quem havia
matado Laura Palmer, parecia que a história tinha chegado ao fim e nota-se que
Lynch foi obrigado pela rede de TV, a “esticar” um pouco além a sua trama.
De qualquer forma, é inegável a
importância da série para a história, não só da TV norte-americana que foi
impactada com um conto sórdido de mistério, sexo, traições e terror mas, na
história da TV mundial. Afinal de contas, todos nós temos um pouco de
bizarrice.
Obs.: Uma terceira temporada foi feita, mais de duas décadas depois pela Netflix e vale uma conferida. Estranhamente, o streaming vermelhinho não colocou as duas primeiras (vai entender). Tem também um longa, Os últimos dias de Laura Palmer, lançado em 1992, que foi um fracasso tanto de crítica quanto de público mas, pra falarmos sobre ele, será em um outro post. Até.
Assim como um leitor observa
um estilo adotado por um autor, ao longo do tempo, ou um pintor, uma banda de
rock e por aí vai, o mesmo acontece obviamente no cinema. Para um diretor que é
também autor, é fácil perceber elementos, características que permeiam cada
filme que é realizado.
Mas como assim, você pode
perguntar: “diretor que também é autor”? Nem todo diretor é autor? Pois é, meu
caro, nem sempre o diretor consegue dar total vazão às suas ideias quando estão
filmando ou no processo de pós-produção. Isso pode ser devido a uma série de
fatores, que não vou me alongar hoje, mas com certeza, servirá como tema
futuro.
Hoje darei um exemplo de um
diretor autor, um sujeito que começou contra todas as expectativas, realizando
um trabalho que, aqui nas terras tupiniquins, seria facilmente taxado de “cinema
de guerrilha”. Alguém que depois de todo o sucesso, e entrando no esquema dos
grandes blockbusters, ainda sim, mantém a sua visão acerca do processo
criativo, tornando fácil para quem assiste, perceber todos os seus maneirismos.
Estamos falando de Sam Raimi.
Nascido em 1959, no estado
de Michigan, Estados Unidos, Samuel Marshall Raimi nos anos 70, já era considerado
o que no futuro seria denominado nerd. Leitor voraz de quadrinhos e com gosto
particular para o cinema de terror, Raimi foi despertando o interesse como realizador
de cinema.
O cinema de Raimi tem como
características um trabalho criativo no uso das câmeras, causando um nível de imersão
absurdo, a mescla de horror com uma dose de comédia pastelão, a eficácia no uso
de efeitos práticos e uma forma bastante peculiar de levar os protagonistas das
suas histórias a um sofrimento que beira o sadismo. Vou apresentar aqui três exemplares,
mas aconselho a ver todos.
UMA
NOITE ALUCINANTE 2
Não
tem jeito, falar de Sam Raimi é falar de sua criação máxima. Lançado em 1987, Uma
Noite Alucinante 2 (título meio maluco porque o primeiro se chama A
Morte do Demônio, mas enfim, Brazil) mudou o jogo para o então jovem
diretor que, seis anos antes havia realizado o primeiro filme com o dinheiro de
troco de pão, feito com os amigos da faculdade mas, que por incrível que
pareça, fez um sucesso absurdo, muito sucesso inclusive fora dos Estados
Unidos, fazendo um circuito vitorioso em vários festivais pelo mundo. Depois
que Stephen King avaliou o filme falando que era a melhor coisa da década(!), o
filme começou a fazer burburinho, sendo aclamado posteriormente, alavancado
principalmente com a novidade que surgia na época: as videolocadoras. A
história do filme? Sim, vamos lá. Apesar de ter o 2 no título, na realidade o
que vemos nada mais é do que a mesma história do primeiro filme sendo
recontada, desta vez com mais recursos, mas engana-se que se trata de uma mera
refilmagem. Ash(papel da vida de Bruce Campbell) e sua namorada Linda (Denisse
Bixler) vão passar o fim de semana numa região montanhosa, numa cabana longe de
tudo e todos. O problema é que ao chegarem na tal cabana, Ash invoca, sem
saber, espíritos determinados a transformar a noite do casal em verdadeiro
inferno na terra. Para as plateias de hoje, mais cínicas e sem tanta vontade de
se impressionar, o filme pode parecer algo como um trabalho de youtube, devido
a precariedade dos efeitos e até mesmo das atuações, mas, não se deixe enganar,
o que Raimi faz aqui fez história e se tornou referência para o cinema de
horror. Nunca um passeio inocente numa cabana deserta foi visto da mesma forma.
UM
PLANO SIMPLES
Raimi
é muito amigo dos Irmãos Cohen, tendo inclusive colaborado na parte técnica ou
servido de influência em muitos dos filmes elaborados pelos dois irmãos. Era
questão de tempo até o próprio Raimi também ser influenciado por eles. Aqui,
numa pequena cidade interiorana, aquelas onde todo mundo se conhece, Hank (Bill
Paxton) em uma caçada rotineira feita com seu irmão Jacob (Billy Bob Thornton) encontra
os destroços de um avião, soterrados em uma densa camada de neve, ao investigar
o local mais um pouco, Hank descobre malas e malas de dinheiro, cerca de 4
milhões de dólares! O que testemunhamos a seguir é a velha questão moral, que
imediatamente a gente se colocar a fazer também: o que fazer ao esbarrar com 4
milhões? Simplesmente chama as autoridades ou fica com a grana? Pois é basicamente
essa é a trama desse filme que, é até considerado subestimado na carreira do diretor,
mas que pra mim, merece um lugar de destaque. No inicio fiz questão de contar a
amizade de Raimi com os Cohen, e isso não foi à toa, porque esse é um tipo de
história facilmente atrelado ao cinema deles. Temas como cobiça, moralidade e a
total imprevisibilidade de uma crescente onda de pequenos erros que vão
desembocar em um final catártico, fazem esse filme, altamente contido e sério,
uma boa pedida.
DARKMAN
– VINGANÇA SEM ROSTO
Antes
de Homem-Aranha e antes de Dr. Estranho no Multiverso da Loucura, houve
Darkman. Pouco tempo depois de um outro jovem diretor, no caso Tim Burton,
apresentar ao mundo sua visão de filme de super herói com Batman de
1989, Raimi percebeu que também poderia surfar na onda desse novo filão,
apresentando uma história também baseada em quadrinhos. O personagem que escolheu
foi o herói pulp dos anos 30 O Sombra, mas nenhum estúdio deu moral. Insistente,
sabendo que não conseguiria os direitos do personagem para fazer o seu filme,
ele então decide criar seu próprio personagem de quadrinhos. Na realidade,
Darkman é uma verdadeira colcha de retalhos, com características que foram
pegadas “emprestadas” de vários personagens diferentes, não só dos gibis, mas,
também da literatura como O Médico e o Monstro, Frankestein. Liam Nesson
(estreando no cinema de ação, olha só) dá vida ao cientista Peyton Westlake, que
está perto de criar a pele artificial perfeita. Infelizmente, sua pesquisa e
sua vida são brutalmente tiradas quando um grupo de criminosos invade o seu
laboratório. Depois de ser brutalmente torturado, ele é deixado para morrer na
explosão. Milagrosamente ele escapa, onde é levado para o hospital como
indigente. Essa é a desculpa perfeita para que, um time de médicos o use como cobaia
para uma experiência radical. Sem condições de suportar as terríveis dores das
queimaduras, ele passa por um processo onde o trato espinotalâmico é cortado, o
que lhe confere “superpoderes” como ser imune a dor e uma força sobre humana.
Ao fugir do hospital, Peyton, agora totalmente desfigurado e sozinho, planeja a
sua vingança contra aqueles que o destruíram. Tudo que veríamos com mais
detalhes e apuro técnico nas aventuras de Peter Parker de Tobey Maguire estão presentes
aqui. A atmosfera sombria, a trilha sonora do Danny Elfman, as questões morais,
a violência atrelada ao humor somadas com uma eficiente atuação de Neeson tornam
esse filme um exemplo palpável de como transpor a energia vibrante das
histórias de quadrinhos em celuloide.
É
triste constatar que a galera hoje em dia curte muito pouco ou praticamente
abomina a ideia de assistir a filmes “antigos”. Coloco em aspas pois, pra esse
pessoal, a ideia de antigo é qualquer coisa lançada em 2018! Esse “problema” só
não é pior que o outro, que esse sinceramente, eu não suporto toda vez que ouço,
o problema da preguiça que vem acompanhado daquela frase: “Tem na Netflix? Se
não tiver, não vejo”.
Esse tipo de conversa por si só já daria muito pano pra manga para uma
discussão mais acalorada, mas, vou me conter um pouco mais porque a conversa é
pra falar de outra coisa, que tá atrelada a essa ideia de “filme antigo”: vamos
falar sobre Cão Branco.
Samuel
Fuller, diretor do longa e também criador do roteiro junto com Curtis Hanson
(que mais tarde ficaria famoso com seu Los Angeles – Cidade Proibida), tem
aqui seu último trabalho em território norte-americano, visto que, Fuller sempre
foi um diretor apegado ao controverso e temas subversivos. De fato, os EUA não estavam
preparados para muitas das ideias que Fuller pregava em seus filmes.
Nesse longa, lançado no longínquo
ano de 1982, Fuller se propõe a discutir como se nasce o discurso de ódio e
como a estupidez de tal discurso pode chegar a consequências aterradoras. O
filme inicia quando uma jovem, de nome Julie(Kristy McNichols) atropela um
pastor alemão e sem saber quem é o dono, ela o leva para casa para tratar seus
ferimentos. Os dias vão passando e mesmo colocando panfletos (galera do zap, estamos
em 1982 tá?) o dono nunca aparece, então ela decide ficar com o bichinho, um
enorme cão branco (que dá título do longa).
Mas algo de muito estranho existe no cão, que tem um modo operandi de ataque
bastante peculiar: ao se deparar com pessoas negras, o cão aparentemente dócil
se transforma em uma fera imparável. Depois de quase matar uma colega dentro do
seu trabalho e de uma ataque dentro de uma igreja (cena essa bem intensa), Julie
decide que o melhor para o cachorro é trata-lo, levando-o para um especialista
em psicologia animal, na trama interpretado por Paul Winfield, numa tentativa de
fazer com que o bicho tire esse ódio que, evidentemente não nasceu junto com ele
mas sim, foi devidamente condicionado pelo seu dono anterior.
É
muito sútil a forma como Fuller traça essa alegoria de culto ao ódio, fugindo
do filme básico de fera aterrorizante que mata de forma indiscriminada. Nunca vemos
como foi feito o treinamento para que o cachorro criasse essa aversão às
pessoas negras, mas nem precisava. O que a trama quer levantar é: o racismo é
algo tão irracional assim? E outra questão, que considero até mais importante:
assim como o cão, que foi ensinado a odiar, nós também não seriamos passíveis
dos mesmos tipos de “ensinamentos”?
É uma pena que na época em que foi lançado, o filme sofreu severos
boicotes, inclusive do próprio estúdio, que acuado, por diversas organizações
sociais que viram com horror uma história de um cão assassino que mata gente
preta, tratou por fazer um esquema de lançamento pífio, praticamente escondendo
o filme do público. Lançado hoje, certamente entraria no hall da cultura do
cancelamento, devido a sua temática totalmente ácida e repulsiva. Para Samuel
Fuller, esse tipo de coisa, seria um belo de um elogio.
Série
é um troço que realmente necessita de comprometimento, pelo menos para mim. Eu
não consigo ver 3 séries ao mesmo tempo, se inicio uma, tenho que acompanhar só
ela por inteira. E esse “trabalho” fica mais difícil porque eu não sou fã de
maratonas, visto que, a meu ver, isso tira totalmente a imersão da história toda,
deixando tudo sem propósito, virando mais um “fast food”.
Tirando toda essa minha birra, é complicado
acompanhar séries. Afinal de contas, a nossa geração começou nesse negócio há
bem pouco tempo atrás. Vai me dizer que você acompanhava Chaves e Chapolin
temporada por temporada? Você nem sabia o significado desse termo, rs.
São poucas as séries que me
prendem, por isso a preferência por filmes, já que o nível de “comprometimento”
é bem menor. Mas, de vez em quando, surge algo no horizonte, algo que chama a
atenção e no texto de hoje, falarei um pouco sobre uma série que,
definitivamente, muito mais gente deveria falar sobre, estou falando de Atlanta.
A
série, cria da mente de Donald Glover (um dos grandes nomes dessa geração que
conta com Joordan Peele e Edgar Wright, só pra começar), narra a trajetória de
vida de Earn(interpretado pelo próprio Glover), um sujeito sem nenhuma
perspectiva, sem dinheiro, vivendo uma relação esquisita com sua ex e ainda
tendo que lidar com as responsabilidades de criar sua filha. Decidido a mudar
de vida, Earn se torna agente do seu primo, Alfred (Bryan Tyree Henry), rapper
que está criando uma fama meteórica com a alcunha de Paper Boy.
A série, que no momento que
escrevo estas linhas está na sua terceira temporada, apresenta episódios relativamente
curtos (entre 25 a 30 minutos), o que facilita o engajamento, embora eu
aconselhe a não maratonar, assista 2 ou 3 episódios seguidos no mínimo e, se
deixe pensar um pouco sobre as coisas que vê. O enredo mescla de forma muito
satisfatória o drama e a comédia. A lista a seguir trás os melhores episódios
de cada temporada, obviamente, sob o meu
ponto de vista. Mais uma vez, aconselho assistir tudo. Bora lá.
TEMPORADA 1, EPISÓDIO 7
Intitulado
B.A.N.(nem conto o significado da
sigla), o sétimo episódio da primeira temporada é um deleite. Com um humor
ácido e uma dose de surrealismo, o episódio faz uma crítica sobre gênero,
feminismo e intolerância. Há muito tempo não tinha rido tanto e, ao mesmo
tempo, tinha ficado tão nervoso.
TEMPORADA 2, EPISÓDIO
6
Teddy Perkins
é a cereja do bolo de uma segunda temporada maravilhosa. Se quem acompanhava a
série pensava que a mente inquieta de Glover já tinha dado o que podia, pensou
muito errado! Suspense, terror, com claras inspirações em clássicos como O Iluminado, evidenciam que Atlanta definitivamente existe para
quebrar qualquer tipo de barreira. Bizarrice de muito bom gosto.
TEMPORADA 3, EPISÓDIO 4
A terceira e última temporada (até o momento),
talvez represente uma proposta mais radical de ir contra a linearidade dos
episódios, o que pode acarretar para alguns uma certa confusão e até mesmo um
distanciamento da série. Mas, não se deixe enganar, os comentários sociais
urgentes e o uso inteligente de vários gêneros como drama, horror, suspense e
comédia ainda continuam. Nesse episódio em questão, intitulado The Big Payback (ou A Grande Vingança), não pretendo dar muito spoiler então, contarei
a trama apenas com um questionamento: E se pessoas brancas, que foram
descendentes de proprietários de escravos fossem condenados a restituir as
pessoas que sua família escravizou no passado?
Pode-se
dizer que existem poucos filmes biográficos realmente muito bons. Isso porque
existem inúmeros fatores que meio que deixam a obra um pouco “amarrada” e
acabam atrapalhando o seu potencial. Agora, enquanto escrevo estas linhas, me
vem na memória La Bamba (1987), The Doors(1991) e Control(2007).
Control narra a história curta porém potente da banda Joy Division
e mais especificamente, aborda a vida tortuosa do seu então líder e vocalista,
o genial Ian Curtis.
O período era a década de 70, a Inglaterra
passava por um período de extremas mudanças sociais e políticas, a classe
trabalhadora passava por grandes perrengues, graças a uma visão bastante
intransigente da então Primeira Ministra, Margaret Thatcher. Em termos
musicais, entretanto, o país passava por uma fase de extrema ebulição, aos
poucos o rock psicodélico, que já sofria com desnecessários virtuosismos, dava
espaço para o crescente punk, um som mais visceral e cru, oriundo de jovens sem
nenhum estudo musical mas, com muita vontade em expressar uma mensagem para o
mundo. Além disso, o glam rock, capitaneado por nomes como David Bowie e grupos
como New York Dolls jogava contra qualquer tipo de parametrização, subvertendo
a estética e trazendo à tona a libertação sexual.
Nesse interim, o jovem Ian
Curtis(interpretado com muita sobriedade por um desconhecido Sam Riley) vivia
de forma pacata na cidade de Manchester. Se casando muito cedo aos 19 anos, já
trabalhando no serviço público, Ian sentia que algo não estava certo. Ele
almejava algo aliado à arte, mais precisamente trabalhar com música mas, a vida
parecida que havia lhe dado um outro rumo, um rumo no qual ele não se sentia
feliz. Foi em um show, em 1976, que mudou tudo. No palco quem estava era uma
banda ainda dando seus primeiros shows e a plateia, que incluía Ian e sua
esposa e mais um pequeno grupo de amigos, perceberam que ali havia uma
possibilidade deles também, fazerem música. Ah, quem estava se apresentado eram
os Sex Pistols...
Com os amigos Peter Hook no baixo,
Bernard Summer na guitarra e Stephen Morris na bateria, a banda estava pronta.
Curtis ficaria a cargo das letras e da voz e aí a história da música passaria
para uma nova fase.
Ian sempre foi um amante, por assim dizer, dos
tormentos da alma. Muito inspirado por gente como Bukowski, Cooper Clarke, Baudelaire,
entre outros e também pelo ambiente opressor que era Manchester naquele
período, Curtis traduzia toda a sua inadequação e angústia nas suas letras. Com
22 anos, Ian já se mostrava como um senhor de 80 anos. Os outros integrantes o
viam como mais um entre eles mas, o que de fato acontecia, era que nas músicas,
Ian já dava sinais de que algo o estava consumindo. A pressão com o sucesso
repentino, os shows que estavam se acumulando, o nascimento da filha bem como
sua relação extraconjugal e uma inevitável depressão aliada a um tratamento
totalmente errôneo da sua epilepsia tornaram por criar uma pressão absurda em
seus ombros. Era 18 de maio de 1980, numa
manhã tipicamente cinza em Macclesfield, região próxima à Manchester, que sua
esposa, Deborah Curtis, o encontra em casa, enforcado com as cordas de um
varal. A banda havia lançado apenas o primeiro disco, Unkown Pleasures e estava
com o segundo disco, Closer, já todo pronto e se encontrava às vésperas para
uma turnê em solo norte-americano. Era o fim de um jovem poeta de apenas 23
anos mas, a sua curta passagem por aqui rendeu reverberações. Thom Yorke com o
seu Radiohead, Eddie Vedder e o seu Pearl Jam, Bono Vox com U2, Renato Russo
com a Legião Urbana, esses só são alguns que beberam e ainda bebem da fonte criada
por Ian Curtis e o seminal Joy Division.
O filme, dirigido por Anton Corbjin, é preciso
e acompanha todas agruras e os poucos momentos felizes de Ian, onde Sam Riley
entrega não só um personagem, mas uma pessoa de fato, com inseguranças,
incertezas, com uma incapacidade latente em comunicar para aqueles que mais
amava como se sentia, incapacidade essa que o trouxe a um fim trágico. Difícil
imaginar outra pessoa a dirigir esse filme senão o próprio Corbjin, já que ele
conheceu o grupo na sua época como fotógrafo e graças ao sucesso póstumo que a
banda teve que fez com que o trabalho de Anton fosse visto por muito mais
gente, sendo requisitado por várias bandas de sucesso mundial durante toda a
década de 80, como Depeche Mode e U2.
Em nota, o filme é baseado
não só nas memórias de Anton com a banda mas sim, do livro escrito pela própria
esposa de Curtis, que por aqui teve o título Ian Curtis – Tocando À Distância.
É um dos raros casos de leia, ouça e veja. Enjoy!
Quando a rotina é pesada e as ambições são pequenas
E o ressentimento voa alto mas as emoções não crescem